O imaginário colonial dos jogos de mundo aberto

Por Leitores
30 de março de 2024

Os textos a seguir foram enviados via forms de contato do BoletIME e não necessariamente condizem com a opinião do corpo editorial.

Durante as últimas férias de fim de ano, acabei voltando para Minecraft - um jogo que esporadicamente me dá vontade de simplesmente abrir e esquecer que a vida real existe -. Retomei um mundo que comecei em 2022, e logo fui atrás de um livro no baú de fora da casa ainda em construção, onde lembro de sempre anotar o progresso, os objetivos, tarefas e projetos antes de fechar o jogo. Pelas páginas, lembrei de precisar coletar pedra, terminar de construir o armazém subterrâneo na casa, expandir o sistema de túneis, refazer o acesso à mina, construir uma ponte para acessar a planície do outro lado do rio, terminar de decorar a sala do portal para o inferno e, entre a miríade de coisas, estava ali, também, um projeto de reformar uma vila que foi gerado perto de casa, incluindo a construção de um monumento na praça central, construção de prédios para expandir a vila, a reforma das casas, ruas e plantações, e também da construção de um templo de adoração de raposas. Quando li essa passagem do meu livro de registros do mundo, algo me incomodou, e me fez pensar depois de ter fechado o jogo pela última vez antes do semestre começar mais uma vez.

As vilas do Minecraft são geradas pelo próprio algoritmo do jogo, são estruturas inerentes do próprio mundo, diferente da minha casa, por exemplo, que foi criada por mim, um jogador. Dentro das vilas, habitam os aldeões, que por sua vez são tratados como humanos pelo próprio design do jogo: diferente de animais domésticos, o jogador não pode pôr um laço em um aldeão e arrastá-lo para onde quiser; e diferente de animais domésticos, o jogador não pode induzir aldeões a se reproduzirem; eles mesmos decidem quando querem. Eles possuem um senso de regionalidade com vestimentas e arquiteturas diferentes e próprias. Existe, portanto, uma ideia vaga de que cada vila é, em essência, locais de expressão de uma cultura própria, específica e local: uma cultura diferente daquela com a qual o jogador compartilha. Assim, através de múltiplas faces, o grupo que possui agência sobre os rumos de um mundo - os jogadores - é delineado do grupo que não possui essa mesma agência - os aldeões -, e o jogo faz questão de lembrar que, apesar de serem igualmente humanóides como os jogadores, eles são diferentes. Os aldeões têm narizes grandes, falam em uma linguagem incompreensível para nós e possuem um sistema econômico próprio que não parece fazer muito sentido.

Cada um desses detalhes não é ruim por si só, mas combinado com uma hierarquia implícita de poder absoluto que os jogadores possuem sobre o mundo em contraste com a passividade por design dos aldeões que não conseguem sequer proteger as próprias casas sem a ajuda ou do jogador ou de golens de ferro, criam cenários que facilitam a colocação destes como um Outro, um diferente de nós. Tudo isso se agrava em casos quando o jogador é indiretamente incentivado a raptar e industrializar os aldeões para construir farms de ferro que gera de maneira passiva um dos itens mais importantes para progressão do jogador - barras de ferro -, ou estabelecer centros de troca baseados em abuso e falsidade ideológica contra os aldeões para conseguir determinados itens que oferecem vantagem única e exclusiva ao jogador.

Esse tipo de metáfora é, de grande modo, muito presente nos jogos sandbox como Minecraft, Terraria, No Man’s Sky, Stardew Valley, entre tantos outros que engajam na ideia de domar o selvagem. Dessa forma, através de conjuntos de interações de mecânicas do jogo, ou da própria narrativa implícita do jogo, surge um estudo de caso interessante para pensar que o gênero sandbox como um todo é repleto de jogos que insere o jogador em um terra nullius, atarefado de “melhorar” o mundo extraindo materiais e construindo infraestruturas e tratando os habitantes desse mundo - seja estes monstros ou aldeões - ou como simples obstáculos para o progresso que o jogador desejar, ou como mais uma fonte de recursos a se explorar; mas não tem um jogo sequer que questiona tudo isso do ponto de vista do local, do nativo, que centra a narrativa em regenerar aquilo que o mundo uma vez foi.

No entanto, gosto de acreditar que as empresas não estão deliberadamente reproduzindo uma propaganda pró-colonial. De certa forma, todo desenvolvedor reconhece, inclusive, como esse tipo de jogo inerentemente adere e repete as narrativas coloniais do espaço físico para o virtual, de como países colonialistas continuam conquistando um Outro. Nisso, percebe uma tentativa de contornar esse legado colonial através de narrativas que fabricam cenários em que essas ações podem ser, de alguma maneira, justificadas. Em Factorio, o protagonista não é um colono, mas sim uma pessoa que acidentou a sua nave num planeta, e que agora precisa conseguir sair desse planeta. Em Minecraft, a impotência relativa do jogador diante do mundo incompreensivelmente grande coloca um cenário em que ninguém é capaz de fundamentalmente mudar a natureza das coisas dentro de um tempo razoável. Todas essas justificativas são uma tentativa de inventar e engajar em uma versão amigável da história: e se o colonialismo mas sem os colonizados?

Essa narrativa, no entanto, também não é uma inovação da indústria. Até hoje o senso comum é repleto de falácias como o policiamento ético que mascara o fracasso sistêmico para o indivíduo, confinando cada um de nós em um pequeno universo de responsabilidades individuais e transformando processos sistêmicos e históricos em pontuais e pequenas histórias e manchetes de jornal. Não é o legado da ditadura que permeia o imaginário fascista, é aquele policial em si que é corrupto e violento; é aquele jogador, de maneira isolada, que decidiu industrializar os aldeões para obter quantidade infinita de ferro.

Curtiu? Compartilha com a galera aí

Outros posts

60 anos do golpe de 64
Nota política sobre os 60 anos do golpe de 1964.
01 de abril de 2024
Por CAMat
Uma Apologia à Matemática Aplicada
“A diferença entre a matemática pura e a aplicada não é científica, apenas social. Um matemático puro é pago para descobrir novos fatos matemáticos. Um matemático aplicado é pago pela solução de problemas bastante específicos.”
30 de março de 2024
Por Vladmir I. Arnold
Repasse da Negociação com o Ministério Público (01/03)
Repasse da reunião de negociação entre estudantes da USP, ministério público e a Reitoria da USP, ocorrida em 01 de março.
30 de março de 2024
Por CAMat