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Em 21 de maio de 2009, cerca de mil trabalhadores da fábrica de auto-peças sul-coreana SsangYong - atual KG Mobility - se organizaram em conjunto ao sindicato de metalúrgicos local, com apoio da Confederação Coreana das Uniões de Comércio, familiares e trabalhadores de fábricas vizinhas para ocupar a planta de Pyeongtaek, decretando a maior greve do século XXI na história sul-coreana como resposta direta e imediata à demissão em massa de 43% da sua força trabalhadora sem aviso prévio após seis meses de pagamento atrasado, o que representou, na época, mais de 2.500 trabalhadores. Após a montagem das fortificações, foram anunciadas três principais demandas pelos grevistas: zero-demissão, zero-terceirização e segurança de trabalho. Segundo a narrativa oficial, as demissões foram decididas com base em alegações de falência decretada pela estatal de manufatura automobilística chinesa Shanghai Automotive Industry Corporation sobre a aquisição de 52% da companhia SsangYong. Estas alegações, mais tarde, foram comprovadamente fraudulentas.
A greve foi inicialmente confrontada por criminosos contratados pela própria fábrica, uma vez que a força policial esteve relutante em intervir, sob pressão de gerar revoltas paralelas por causa do já descontentamento com as políticas neoliberais e conservadoras do então presidente Lee Myung-bak, eleito em 2007 - condenado 10 anos depois por corrupção, suborno e sonegação de imposto, servindo até hoje uma sentença de 15 anos -. Ao decorrer do mês de junho, a automobilística sul-coreana recusou todas as tentativas de negociação, mesmo com as demandas sendo cada vez mais enxutas, passando a focar apenas na revogação das demissões. Em apoio e solidariedade aos trabalhadores de SsangYong, fábricas vizinhas também organizaram greves esporádicas. O impasse perdura até 20 de julho, quando milhares de policiais sob ordem judicial em cooperação não-oficializada com criminosos contratados pela empresa lançam uma série de ataques para desmontar e desmoralizar a greve, com apoio de helicópteros e armamentos anti-terroristas e químicos, levando aos trabalhadores a se retirarem e reagruparem na planta de tintas da empresa, sabendo que policiais seriam relutantes em atacar um local de armazenamento de líquidos altamente inflamáveis.
Sob mote de “[…] declaramos nossa vontade resoluta de lutar até a morte”, após 77 dias de greve, os trabalhadores aceitam a se conciliarem sob condições de aposentadoria adiantado para 52% dos grevistas, e recontratação de 48% dos trabalhadores após um ano de licença não-remunerada, caso condições econômicas permita. Hoje, mais de 15 anos após a greve, os acordos ainda não foram cumpridos. Em investigações posteriores, foi relatado que cerca de 200 mil litros de gás lacrimogêneo cujo componente ativo é comprovadamente cancerígena foram despejadas em forma líquida via helicópteros, 14 grevistas e familiares morreram, cinco trabalhadores faleceram por hemorragia cerebral em direta consequência de agressões policiais, cinco cometeram suicídio. Após o fim da greve, os trabalhadores que ousaram lutar por seus direitos tiveram seus nomes catalogados e enviados para uma série de empresas sul-coreanas, efetivamente impedindo-os de qualquer chance de conseguir um emprego novo após as demissões. Os membros do sindicato de metalúrgicos foram multados em equivalente a quase 40 milhões de reais ajustados, além do juros aplicado que em poucas semanas foi capaz de dobrar a quantia. Nenhum trabalhador poderia sequer sonhar em pagar frações dessa quantia, então além do emprego, os trabalhadores perderam também suas casas, carros, e tudo que fosse de valor para a própria empresa que os levaram à falência em primeiro lugar.
Em uma cena de pouco mais de 3 minutos do quinto episódio da primeira temporada do seriado sul-coreano Round 6, descobrimos que o protagonista Gi-hun relembra por meio de um ataque de síndrome de estresse pós- traumático a sua participação em uma greve muito similar ao episódio histórico de SsangYong: ele também trabalhava numa automobilística, seus colegas também foram demitidos em massa, e um de seus amigos é golpeado até a morte por um policial na frente dele pedindo ajuda. Na verdade, mais que similar, o protagonista foi construído e escrito como uma referência direta aos trabalhadores de SsangYong, e vemos na série as consequências muito nítidas do aparato neoliberal estatal sul-coreano. Gi-hun perde sua família por não ter mais a capacidade de manter uma casa em pé. É possível supor, inclusive, que o divórcio com sua esposa possa ter sido de acordo mútuo, uma vez que todas as dívidas impagáveis seriam transferidas para a esposa caso Gi-hun morresse. O seu vício em apostas se torna um comentário ácido sobre como nós, enquanto sociedade, vê vícios como falha de caráter pessoal e não algo sistêmico quando lembramos que a sequer possibilidade do personagem de conseguir emprego foi sabotada pelo estado.
Logo após a Segunda Guerra Mundial em 1945, como esforço para evitar a repetição das indignações, revoltas e depressão que vão surgir após a Primeira Guerra, o governo britânico promete uma série de serviços de bem-estar social para sua população, incluindo o Serviço Nacional de Saúde - NHS - e sindicatos são tolerados de suas existências como nunca antes. Em retorno, as organizações de trabalhadores conciliam em não fazer nada de muito revolucionário. Isso criou uma vaga ideia de que o Estado serve e deve à sua população: trabalhadores lutaram em duas guerras mundiais, reconstruíram o país depois de ambas, e são a base para o sequer funcionamento de todos os setores do país. Parecia muito lógico que, em retorno, o Estado deveria cuidar destes trabalhadores.
Nesse cenário, em sua infame entrevista, Margareth Thatcher vai resumir o seu governo e, por extensão, neoliberalismo, com a seguinte frase: “A economia é o método. O objeto é mudar o coração e a alma”. O seu projeto neoliberal - mais do que a nominal privatização e venda de indústrias estatais-públicas - tinha como objetivo mudar a maneira como cada um residente sob seu governo se vê, e da sua relação com a ideia de Estado, visando destruir o Consenso do Pós-Guerra e, no seu lugar, cultivar um novo senso de que não existe esse pertencimento a uma sociedade, mas sim vários empreendedores individuais soberanos cujo valor é definido pelas conquistas financeiras com a inserção cada vez maior da ideologia do livre mercado, impulsionado pelo desmonte de sindicatos e movimentos trabalhistas - que não seriam possíveis sem intervenção estatal -, e pela mentira do caráter auto- regulatório do mercado.
No episódio 7 de Round 6, participantes são orientados a atravessar uma ponte dupla com painéis de vidro, em que um lado é vidro comum e outro é vidro temperado. Caso o participante pise no lado que tem o painel de vidro comum, ele quebra e leva o participante a uma queda fatal; do contrário, o vidro permanece intacto e o participante sobrevive para dar o próximo passo até chegar do outro lado da ponte. Para qualquer pessoa mundana, os dois tipos de vidro são, no entanto, indistinguíveis a olho nu, levando a uma dinâmica em que a sobrevivência dos participantes dependem puramente da sorte. Essa dinâmica é, em grande parte, um ponto focal para a maioria dos jogos mortais apresentados na série. A organização que gerencia os jogos, também, se orgulha dessa dinâmica ao entendê-la como um equalizador de chances, uma mão-invisível que nivela todos perante a chance do aleatório, a representação de um microcosmo que preza pela meritocracia do sobrevivente. Exceto que em um determinado momento, é revelado que um dos participantes era hialotécnico - técnico que fabrica vidros -. Ele sabia como distinguir um vidro comum do temperado através das diferentes refrações de luz que os painéis causavam.
Sob justificativa puramente de “ser entediante” dos espectadores - mascarados e estrangeiros, numa alusão à inserção de capital estrangeiro na Coréia do Sul -, a gerência do jogo desativou todas as luzes, incapacitando o hialotécnico de utilizar da sua habilidade para progredir. Esse mérito não é merecido ao hialotécnico pois este representaria uma chance para que todos os participantes depois dele pudessem passar em segurança; ao ponto que o mérito individual da força e aporte físico do ex-mafioso Deok-su é merecido pois os únicos momentos em que essa habilidade individual poderia ser usado no contexto dos jogos é ferindo e eliminando o outro.
Durante os primeiros três anos do governo de Thatcher, subsídios voltados à indústria automobilística e agronegócio mais que dobrou, culminando na defesa de Thatcher anunciando que “os nossos fazendeiros estão sendo pedidos para competir não em termos iguais, mas contra outros competidores fortemente subsidiados”. Ao mascarar o forte subsídio que seu governo concedeu ao setor privado e, ao mesmo tempo, demonizando serviços públicos e desmantelando sindicatos e movimentos sociais - com ajuda, claro, do aparato policial estatal -, o senso de solidariedade entre a classe trabalhadora foi se corroendo quando a ideia de comprar uma casa e virar classe média se tornou uma saída melhor para subir de condições de vida, facilitada pelos programas com Right to Buy, também fortemente subsidiados pelo Estado. Ao transformar o posse de bens em sinônimo para sucesso, o neoliberalismo invadiu os nossos sonhos e remodelou o que entendemos de sucesso até hoje.
O que antes era um direito de cada trabalhador esperar receber cuidados de um Estado pelo qual este serviu e construiu, com o desmanche da ideia de um pertencimento à sociedade, usar de recursos e receber assistências do Estado enquanto empreendedores individuais responsáveis pelas suas próprias economias se tornou um símbolo de fracasso pessoal; algo vergonhoso. Esse trabalhador não está mais usufruindo do seu direito conquistado pelo seu trabalho e servidão. Ele está sofrendo consequências da sua falha pessoal. Isto é, desde que o sujeito em questão não seja um industrialista privado. Neste caso, todo apoio estatal na forma de subsídios é concedido para que possa ganhar de outros “competidores fortemente subsidiados”.
Essas críticas à aparente contradição e hipocrisia de Thatcher e neoliberalismo são importantes, mas não bastante. Quando entendemos o subsídio num sistema que endeusa o livre mercado como uma hipocrisia e desonestidade, subconscientemente aceitamos o argumento implícito de que o objetivo das indústrias é competir com outras indústrias: “[…] o objeto é o coração e a alma”. O motivo pelo qual não devemos aceitar a privatização das nossas produção alimentícia não é porque elas competem melhor quando subsidiados pelo Estado; mas sim porque a produção de comida não pode servir aos interesses de uma classe composta por meia dúzia de burgueses que nunca irão pensar em garantir a sobrevivência humana. A necessidade de comer, mais vezes que menos, contradiz as necessidades do mercado.
Relembrando como os oponentes políticos de Thatcher derrotaram a si mesmos ao aceitarem a premissa neoliberal de forma acrítica e jogar o jogo nos termos do inimigo, as nossas lutas contra o neoliberalismo, hoje, não podem cair no mesmo erro de tomar os argumentos neoliberais na sua aparência. Criticar privatização da ViaQuatro através da ótica de que no fim se perde dinheiro e que o Estado acaba tendo que subsidiar de qualquer maneira não é um problema por si, mas arrisca aceitar a premissa de que o metrô e o transporte público foram construídos para lucro.
No final da primeira temporada de Round 6, já no leito da morte, o que aparenta ser o coordenador geral dos jogos mortais chama e faz uma aposta com o protagonista Gi-hun sobre um homem deitado na calçada passando frio. Ele aposta que ninguém irá ajudá-lo antes da meia-noite, e o homem morrerá de frio; Gi-hun, um ex-operário, aposta no contrário. O idoso no leito finalmente morre, sem ver que, no fim, Gi-hun estava certo: do mesmo jeito que somos e devemos ser solidários com outro, no fim, alguém veio ajudar o homem na calçada.