Ter HIV na USP, ou o uso do Hífen na Língua Portuguesa

Por Jorge Beloqui
06 de dezembro de 2023

Texto de autoria de Jorge Beloqui originalmente publicado em maio de 1996 na Revista ADUSP nº6.

Faz uns anos que sei que tenho o HIV. Tomei AZT durante quatro anos e depois ddI por dez meses. Em dezembro de 1995 fiz um exame de CD4. Soube do resultado em janeiro: 340 CD4/mm³. Contagem normal: maior do que 1000. Se você tiver HIV e menos de 500, talvez deva tomar algum remédio como AZT, ddI, ddC, etc. A contagem anterior era 390; logo, o remédio já não estava mais dando o resultado esperado.

Quando voltei de férias, meu médico - eu gosto dele; desde que comecei a me tratar do HIV, é o terceiro - me recomendou voltar ao AZT em combinação com o Epivir, também conhecido como 3TC ou Lamivudine. Eu sabia que o 3TC não era fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, como os outros dois. O Hospital do Servidor não fornece estes remédios tampouco. Perguntei como obter.

-Pode-se importar dos EUA. Foi liberado pela FDA em novembro do ano passado. Deve custar uns 300 US$/mês. E se prepare porque daqui a pouco você pode ter de tomar o Saquinavir, a US$ 600/mês, disse o médico.

Decidi, então, solicitar, por carta, ao reitor, que a Universidade de São Paulo me pagasse este remédio, e os que viessem no futuro. Explico, agora, o porque de ter tomado esta medida. Conheço várias empresas que têm plano de saúde para seus funcionários e programas de pagamento de remédios, exames, etc. Banco do Brasil, Banespa, Souza Cruz, Fundação Cesp, Credicard, Petrobrás, Xerox do Brasil, Vale do Rio Doce, entre outras.

Mandei a carta pelas vias formais: pedi ao meu chefe de departamento para encaminhá-la. Ele, por sua vez, encaminhou para o diretor do Instituto e este para o reitor. Pensei: estou revelando meu status de HIV positivo no Instituto de Matemática e Estatística (IME) para algumas pessoas, e para todas as pessoas que lerem esta correspondência. Qual é o problema? A discriminação à qual você se expõe pode vir a ser aparente ou silenciosa. Mas isso não importa, preciso que me paguem esse remédio porque com meu salário não dá.

Solicito ao meu chefe que pergunte se tem algum atendimento para pessoas com HIV na USP. Quem sabe na Coseas, no Hospital Universitário (HU)? Ele averigua. No HU, dizem para ir ao Emílio Ribas, o que significa que no hospital da universidade não existe atendimento, uma vez que o Emílio Ribas nada tem a ver com a USP. A Coseas, por sua vez, não se ocupa mais de saúde.

Em 22 de janeiro deste ano, escrevo ao reitor. Começo a aguardar a resposta.

Enquanto isso, processo emocionalmente a mudança de medicamento: é um cartucho que se queimou, estou precisando de um remédio aprovado três meses antes.

-Poxa, Jorge, penso comigo, você está usando medicamentos da fronteira do conhecimento; quando este falhar, esperemos que você não tenha atravessado a fronteira.

Há algo de luto nesta mudança; preciso sempre de um tempinho mental antes de começar uma nova terapia. Lembro do primeiro AZT (o primeiro AZT a gente nunca esquece, escreveu o Herbet Daniel). Entretanto, continuo fazendo minha ginástica, e me preparando para o começo do semestre.

Decido: vou esperar até o início das aulas para falar com meus colegas do IME sobre meu pedido. Fui para o Rio de Janeiro e desfilei no Carnaval. A minha escola caiu do primeiro para o segundo grupo. Presságio? Antes da viagem falo com os companheiros da Adusp: seria possível que eles falassem com a Reitoria para saber se tem novidade?

Comecei as aulas; liguei para o gabinete do reitor: “Na próxima semana haverá uma resposta”, dizem do outro lado da linha.

No dia 1º de março vejo no meu escaninho a resposta da Reitoria em envelope aberto. Um mês e uma semana para responder ao pedido de um medicamento.

Enquanto isso, uma amiga de uma ONG - milito em ONGs/AIDS desde agosto de 1989 - me liga e diz:

-Jorge, tenho duas doses de Epivir para você.

-Obrigado, Paula, vou pegar o medicamento.

A resposta da Reitoria vem no sentido oposto: não dispõe de recursos. No futuro vai analisar a complementaridade do SISUSP ao IAMSPE etc. Não é com ela. Diferente dessas empresas que citei.

-Trabalhei 15 anos para a instituição errada?, penso. O que significa “comunidade universitária” neste contexto? As aulas começam; tenho uma turma de 86 alunos. No semestre passado, tinha uma de 75 e outra de 85. Como se vê, meu estado clínico é excelente!

Falo com meus colegas do IME. Inicialmente apenas com alguns. Parece que sou meio brutal. Chego e digo:-Luís, tenho HIV, preciso de um remédio chamado 3TC. O Ministério da Saúde paga o AZT mas não este outro. Pedi para a Reitoria. Ela negou. Acho que o IME tem que fazer alguma coisa.

Choque inicial dos meus colegas; mas eles aguentam o tranco e dizem: “Vamos apresentar isto para o conselho do Departamento”. O Conselho se manifesta por unanimidade no sentido de que: “…​ a Universidade providencie rapidamente a estrutura necessária para todos os estágios de tratamento dos portadores de HIV”. Em particular “…​o imediato fornecimento do medicamento ao professor…​”

Há a iniciativa de um abaixo-assinado e a seguir afixo a correspondência com a Reitoria no mural da Adusp. As reações continuam: há choros, abraços, “conte comigo”, “o que precisar”, dificuldade até em me abordar para me dizer todas essas coisas. Reclamação: “Como você não me contou antes?”. Eu também tenho dificuldade: me emociono, é muito sentimento de uma vez.

Mas aqui se nota que trabalhei por 15 anos no IME. Um conceito de comunidade universitária diferente: com solidariedade. Obrigado, colegas! Vocês são ótimos!

Aí fico sabendo que teve funcionário do IME que morreu de AIDS faz dois anos. Como eu não soube? Muitos sabiam que eu participava do trabalho com as ONGs/AIDS. Poderia tê-lo ajudado com alguma coisa. Foi o medo da discriminação, inutilidade de pedir auxílio à USP? A clandestinidade e a discriminação aceleram o curso da doença. Mas para que contar na USP se eles não vão fazer nada?

Vários funcionários e professores da USP têm HIV ou AIDS. Se tratam fora da USP. Outros morreram, como o Jacques no meu Instituto. E sei de outros em outras unidades. Quantos alunos, funcionários e professores devem morrer para que a USP tome alguma providência? “The answer, my friend, is blowing in the wind…​”

Em 3 de março, começo a tomar o AZT+3TC. Pergunto a Paula:

-Não vou pagar nada por isto?

-Não, Jorge. Estou dando isto para você porque meu amigo não vai usar, diz ela.

-Mas alguma coisa devo pagar, nem que seja US$ 100.

-Já que você quer saber, ele não precisa mais. Foi desta para melhor, conta minha amiga.

-Então, tá.

Vou no HU, para me certificar das coisas lá. Falo com o clínico que tenho HIV e preciso de 3TC. “O HU não fornece medicamentos”, afirma o clínico. Então quero fazer o exame CCD4, digo. “A gente não faz esse exame. Damos guia para retirar medicamento na Secretaria da Saúde”, diz o médico. Poxa, penso, eles não dão medicamento nem fazem exame. Devem tratar pelo poder da mente.

Escrevo para o diretor do Hospital Universitário: “Vocês querem se livrar dos pacientes com HIV. Não fazem exame nem dão medicamentos. Obviamente o paciente vai preferir ir no hospital que dá os medicamentos ou no que faz exames para poupar uma viagem. E na hora que ficar doente, nem se fala, a viagem se torna um esforço muito grande. Sugiro formar um Conselho de Usuários constituído pela Adusp, Sintsup, DCE e associações de moradores dos bairros próximos. Afinal, eles são os destinatários dos serviços, os consumidores.”

A resposta vem rápido. Este é o seu mérito. Fala que AIDS precisa de atendimento especializado etc., e que lá não existe esse atendimento. Respondo que AIDS é a primeira causa mortis em São Paulo na faixa de 25 a 44 anos (dados do SEADE). Merece assistência em qualquer hospital. Sempre o argumento da especialização. Na verdade, quando não quer atender, quando quer mandar para “outro lugar”, quando quer excluir. Se for necessário, aprenda! Pra quê estar numa universidade? Qual é o seu conceito de comunidade universitária?

Leio na Folha de S. Paulo, num domingo, que os imigrantes brasileiros ilegais com HIV/AIDS nos Estados Unidos têm um tratamento muito bom: medicação, hospital etc. Só não podem sair do país porque, então, não podem voltar. Mas a saúde é garantida. Penso: imigrante brasileiro ilegal com HIV/AIDS nos EUA tem melhor atendimento do que o que é oferecido a um professor da USP pela USP.

O abaixo-assinado circula entre os professores do IME. Assinam uns 80%. Outros dizem que não vão assinar porque deveria se pedir por todas as doenças crônicas e não só por algumas. Sugiro que mandem cartas à Reitoria neste sentido; talvez tenham pensado em alguma coisa ainda melhor para fazer, porque não fazer nada é deixar tudo como está. A conferir: nem todos precisam seguir os mesmos caminhos.

Entretanto, todo o mundo já sabe que tenho HIV. O ambiente matemático do Brasil também. Devo me apressar a escrever para alguns amigos pelo correio eletrônico para que saibam diretamente de mim e não por terceiros. São mensagens duras e cruas, mas é assim mesmo. Ficam esperando notícias para tomar alguma atitude. Mas uns dias depois começam a circular abaixo-assinados no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Obrigado, queridos!

Alguns dizem: “Nós admiramos a sua atitude corajosa e a sua luta política”. Não é tão corajosa. É a única coisa que tinha a fazer. Primeiro fui pelas vias institucionais. Não deu certo. O que sobrava: a clandestinidade? Ela mata. Tendo HIV e menos de 500 CD4; tem de se tratar. Só sobrou falar para os meus colegas. Se eu tivesse conseguido a mediação, não teria falado publicamente que tenho HIV; talvez não agora. Tenho medo da discriminação e não tenho pasta de herói nem de mártir. É claro que há uma luta política, que eu apoio. Sem meu depoimento, se a luta se desenvolvesse em abstrato - “Façamos uma campanha para que as pessoas com HIV/AIDS da USP tenham um bom atendimento” -, seria mais difícil. Está é minha contribuição para essa luta. O resto é de toda a comunidade universitária - inclusive eu.

Sou ateu; tive uma educação católica. Lembrei do vídeo de uma ONG, a ISER, chamado: “Estive enfermo e fostes verme” (Mateus). Soa igual a: “Estive enfermo e fostes verme”. Taí, o uso do hífen na língua portuguesa.

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