Que Fazer?, Capítulo II (excerto)

Por Vladimir Lenin
21 de outubro de 2023

A espontaneidade das massas e a consciência da social-democracia*

Dissemos que é preciso inspirar ao nosso movimento, muito mais vasto e profundo do que o da década de 70, a mesma decisão abnegada e a mesma energia que naquela época. Com efeito, parece que até agora ninguém ainda duvidara de que a força do movimento contemporâneo consistisse no despertar das massas (e principalmente do proletariado industrial), e a sua debilidade na falta de consciência e de espírito de iniciativa dos dirigentes revolucionários.

Contudo, nestes últimos tempos foi feita uma descoberta espantosa que ameaça subverter todas as ideias até agora dominantes sobre este ponto. Esta descoberta foi feita pela R. Dielo, que, polemizando com o Iskra e a Zariá, não se limitou a objeções particulares, mas tentou reduzir o desacordo geral à sua raiz mais profunda (…​). A Rabótcheie Dielo acusa-nos de subestimar a “importância do elemento objetivo ou espontâneo do desenvolvimento”. (…​)

Por isso mesmo, a questão das relações entre o consciente e o espontâneo apresenta um imenso interesse geral e é preciso analisá-la com todo o pormenor.

No capítulo anterior sublinhamos a atração geral da juventude instruída russa pela teoria do marxismo em meados dos anos 90. Também as greves operárias adquiriram, por aquela época, depois da famosa guerra industrial de 1896, em Petersburgo, um caráter geral. A sua extensão por toda a Rússia testemunhava claramente como era profundo o movimento popular que tornava a renascer, e já que falamos do elemento espontâneo é certamente este movimento grevista que deve ser considerado, em primeiro lugar, como espontâneo. Mas há espontaneidade e espontaneidade. Também houve greves na Rússia durante as décadas de 70 e de 60 (e até na primeira metade do século XIX), greves acompanhadas da destruição espontânea de máquinas, etc. Comparadas com estes motins, as greves da década de 90 poderiam mesmo ser qualificadas de conscientes, tal foi o progresso do movimento operário durante aquele período. Isto mostranos que, no fundo, o elemento espontâneo não é mais do que a forma embrionária do consciente. E os motins primitivos refletiam já um certo despertar do consciente. Os operários perdiam a fé tradicional na inamovibilidade do regime que os oprimia; começavam…​ não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência coletiva e rompiam resolutamente com a submissão servil às autoridades. Mas isto, contudo, era mais uma manifestação de desespero e de vingança do que uma luta. As greves dos anos 90 oferecem-nos muitos mais clarões de consciência: formulam-se reivindicações precisas, calcula-se antecipadamente o momento mais favorável, discutem-se os casos e exemplos de outras localidades, etc. Se os motins eram simplesmente a revolta de oprimidos, as greves sistemáticas representavam já embriões - mas nada mais do que embriões - da luta de classes. (…​) Neste sentido, as greves dos anos 90, apesar do imenso progresso que representavam em relação aos motins, continuavam a ser um movimento nitidamente espontâneo.

Dissemos que os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países testemunha que a classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só é capaz de desenvolver uma consciência tradeunionista, quer dizer, a convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários, etc. Por seu lado, a doutrina do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas por representantes instruídos das classes possidentes, por intelectuais. Os próprios fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenciam, pela sua situação social, à intelectualidade burguesa. Da mesma maneira, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de uma forma completamente independente do ascenso espontâneo do movimento operário; surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. Na época em que estamos a falar, isto é, em meados dos anos 90, esta doutrina não só constituía já um programa completamente formado do grupo Emancipação do Trabalho, como tinha conquistado a maioria da juventude revolucionária da Rússia.

Assim, existiam, ao mesmo tempo, o despertar espontâneo das massas operárias, despertar para a vida consciente e para a luta consciente, e uma juventude revolucionária que, armada com a teoria social-democrata, se orientava com todas as suas forças para os operários. Além disso, importa sobretudo deixar bem assente o fato, frequentemente esquecido (e relativamente pouco conhecido), de que os primeiros sociais-democratas deste período, ocupando-se com ardor da agitação econômica (…​) redigiram, já em fins de 1895, o primeiro número de um jornal intitulado Rabótcheie Dielo. (…​) O editorial deste jornal esboçava os objetivos históricos da classe operária da Rússia, pondo em primeiro plano a conquista da liberdade política. (…​) Assim, este primeiro ensaio, se não nos enganamos, dos sociaisdemocratas russos da década de 90, não era um jornal de caráter estritamente local e ainda menos de caráter economista; visava unir a luta grevista ao movimento revolucionário contra a autocracia e levar todas as vítimas da opressão política do obscurantismo reacionário a apoiar a social-democracia. E quem quer que conheça, por pouco que seja, o estado do movimento nessa época, não poderá duvidar que um tal jornal teria sido acolhido com plena simpatia tanto pelos operários da capital como pelos intelectuais revolucionários e teria tido a mais vasta difusão. O fracasso deste empreendimento provou simplesmente que os sociais-democratas de então não estavam em condições de satisfazer as exigências vitais do momento por falta de experiência revolucionária e de preparação prática. A falta de preparação da maioria dos revolucionários, sendo um fenômeno perfeitamente natural, não podia provocar qualquer apreensão particular. A partir do momento em que as tarefas eram definidas corretamente, a partir do momento em que havia energia suficiente para repetidas tentativas para realizar estas tarefas, os reveses temporários eram apenas meio mal. A experiência revolucionária e a capacidade de organização são coisas que se adquirem. A única coisa que é precisa é querer desenvolver em si as qualidades necessárias! A única coisa que é precisa é ter consciência dos seus defeitos, o que, no trabalho revolucionário, é já mais de meio caminho para os corrigir!


Detalhe: Social-democracia é o que conhecemos hoje como comunismo; portanto, social-democrata é o comunista.

Curtiu? Compartilha com a galera aí

Outros posts

60 anos do golpe de 64
Nota política sobre os 60 anos do golpe de 1964.
01 de abril de 2024
Por CAMat
Uma Apologia à Matemática Aplicada
“A diferença entre a matemática pura e a aplicada não é científica, apenas social. Um matemático puro é pago para descobrir novos fatos matemáticos. Um matemático aplicado é pago pela solução de problemas bastante específicos.”
30 de março de 2024
Por Vladmir I. Arnold
O imaginário colonial dos jogos de mundo aberto
“Assim, através de múltiplas faces, o grupo que possui agência sobre os rumos de um mundo - os jogadores - é delineado do grupo que não possui essa mesma agência - os aldeões -, e o jogo faz questão de lembrar que, apesar de serem igualmente humanóides como os jogadores, eles são diferentes.”
30 de março de 2024
Por Leitores
Repasse da Negociação com o Ministério Público (01/03)
Repasse da reunião de negociação entre estudantes da USP, ministério público e a Reitoria da USP, ocorrida em 01 de março.
30 de março de 2024
Por CAMat